Manifesto a favor da sinestesia:
por uma sensibilidade múltipla do mundo, do tempo e da arte
Depois de, na Antiguidade, o conhecimento e a perceção terem sido estruturados fundamentalmente pelo sentido da visão (“teoria” vem do verbo grego theoro, que significa vejo) e de, na Idade Média, a construção e a partilha do saber terem como dispositivo fundamental o ouvido na dimensão comunitária em que aconteciam, a Galáxia de Gutenberg, como lhe chamou McLuhan, reinstaurou, ao longo de toda a Modernidade, o sentido da visão que, a partir da era de Marconi, recuperou parcialmente também o ouvido no reino dos audiovisuais. Os outros sentidos foram sendo relegados para atividades menores (como o sentido do gosto ou do olfato) ou para a esfera privada e íntima (como o sentido do tato). As últimas décadas e a experiência da comunicação durante o período pandémico contribuíram ainda mais para a centração no sentido da vista coadjuvado pelo sentido do ouvido no quadro de um primado da comunicação à distância, em que a experiência da vida e do mundo foi substituída pela perceção remota de imagens visuais e acústicas. Os espaços de ressonância reduziram-se, quer no que se refere ao seu número, quer no que se refere à sua diversidade.
Mas se, como diz Hölderlin, “onde está o perigo, cresce também o que salva”, a consciência do empobrecimento estético e estésico em que vivemos faz despertar a necessidade de recuperar os sentidos perdidos e sobretudo o seu inter-relacionamento e a sua complementaridade, juntamente com as suas diferentes virtualidades ou potencialidades.
O sentido da visão é já em si muito diferente do sentido do ouvido. Por alguma razão o panótico de Bentham, repensado por Foucault em Vigiar e punir, e o Big Brother de G. Orwell são, antes de mais nada, uma referência ou uma crítica ao poder objetivador da visão: a visão é um sentido muito mais dominador do que o ouvido que é marcado sobretudo pela recetividade, pelo acolhimento, pelo seu carácter holístico e pela sua abertura ao outro, ao mundo e às suas formas de expressão. E só o jogo dos dois sentidos implicaria que, aprendendo a lição da história, nos habituássemos a ver como quem escuta (sem com isso esquecer que a escuta também deve complementar-se com algumas virtudes da visão).
Mas a sinestesia da visão com o ouvido é ainda uma sinestesia pobre e redutora. A experiência do mundo, do tempo e da arte tem de ser feita também com os outros sentidos: o cheiro, o gosto e o tato. O cheiro tem vindo a ser privilegiado pelas indústrias e pelas artes do que poderíamos chamar a cosmética do aroma e dos perfumes, e o gosto constitui o dispositivo mais mobilizado pelas também chamadas indústrias e artes da gastronomia. O tato foi, talvez, o mais esquecido de todos os sentidos na cultura ocidental, embora tenha como órgão a superfície mais extensa do nosso corpo: não só os dedos, mas a pele que nos cobre, nos resguarda, nos separa e nos liga, física e materialmente, ao mundo.
O desafio é, assim, duplamente vetorizado: por um lado, superar a unidimensionalidade do sentido da visão, ou, quando muito, a bidimensionalidade dos sentidos da vista e do ouvido pela multidimensionalidade de todos os sentidos, resgatando da sua menoridade ou do seu esquecimento o olfato, o gosto e o tato; por outro lado, quebrar a atomização dos sentidos, percebendo e sentindo, ecossistemicamente, que em cada sentido estão presentes e contraidamente atuantes todos os outros, sabendo-se que cada um deles implica e desenvolve capacidades diferentes na relação com o mundo. Vemos com os olhos, mas também vemos com os ouvidos, com o gosto, com o olfato e com o tato; ouvimos com os ouvidos, mas também, escutamos com os olhos, com o gosto, com o olfato e com o tato; saboreamos com o gosto, mas o sabor é incomparavelmente melhor se saborearmos também com os olhos, com o ouvido e com o olfato e com o tato; cheiramos com o olfato, mas o que vemos também tem cheiro, como tem um aroma específico o que ouvimos, o que saboreamos e o que tocamos; e sentimos as coisas pelo tato, mas os olhos também sentem tatilmente o mundo, tal como os ouvidos, o gosto e o cheiro. E o que é um beijo senão um ato em que tocamos o outro ou a outra pelo tato e pelo sabor na própria boca, pelo olhar ampliado do seu rosto, pelo ouvido do rumor da sua respiração, pelo aroma íntimo da sua presença? Quando foi que conseguimos beijar alguém com todos os nossos sentidos?
O meu recado para o futuro é, assim, o recado da sinestesia no sentir conjunto de todos os sentidos. Sentir com todos os sentidos o mundo, as coisas, as pessoas, as atmosferas, as ambiências, os desejos, as alegrias e as tristezas, as esperanças e os desesperos. Sentir o tempo com todos os sentidos: porque o tempo vê-se, ouve-se, mesmo no silêncio do seu fluir, e também se cheira, toca e saboreia (Byung Chul-Han): há tempos amargos e doces, tempos ásperos e suaves, tempos musicais, ruidosos e silenciosos, tempos aromáticos e fedorentos, tempos sombrios e tempos luminosos. E as expressões humanas também têm de ser sentidas e percebidas com todos os sentidos, a começar pelas palavras, que não se ouvem apenas, mas que se veem, saboreiam, cheiram e se tocam, vibrando na nossa pele e nela ressoando até ao fundo mais íntimo do nosso corpo a que alguns chamam alma.
E, mais do que tudo, a arte tem de ser o espaço e o tempo dos nossos cinco sentidos: há que aprender a ver a música e a sua dança, cheirar o seu aroma, sentir o seu toque, saborear a sua melodia enquanto se ouvem os seus sons. E o mesmo se diga do teatro, da pintura, da escultura, da fotografia, do cinema, da dança e até da arquitetura.
Sentir ao mesmo tempo com todos os sentidos: só assim faremos do mundo, do tempo e da arte a nossa casa e a nossa morada, ou seja, a casa do nosso corpo e da nossa alma, a casa do todo uno que somos!
Paradela da Cortiça, outubro de 2023
João Maria André
(filósofo, encenador, poeta)
PS: poema escrito no tempo das máscaras, em plena pandemia:
Perdemos os rostos
Não bastam os olhos. Perdemos os rostos,
a matéria subtil que os olhos habitam,
as curvas recortadas nas dobras da luz
e também as cicatrizes escritas pelo tempo
na face que já foi a casa da infância.
Não bastam os olhos. Perdemos o tato
e com ele o gosto que é o tato da boca,
a textura misteriosa dos beijos,
a água simples e calma da ternura
que desliza na pele e se demora nos lábios
como se fosse aí o nascimento do dia.
Não bastam os olhos. Perdemos a música,
as palavras simples na límpida pureza
dos sons, essa dança em que respiram
os poemas iluminados na geometria do corpo.
Não bastam os olhos. Perdemos o odor,
o singular perfume de cada ser,
o labirinto em que erramos cheirando o suor
com que sempre se tece a paixão da diferença.
São mudos os olhos sem a linha que guia
as tão inquietas mãos do olhar
nos segredos ocultos no mapa do rosto.
São mudos os olhos sem aqueles sentidos
com que escutamos as almas dos outros
e nos demoramos no interior do seu mundo.
Figueira da Foz, agosto de 2020