Acerca do futuro…

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho. Pesa-me um a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades.

13/6/1930, Bernardo Soares (Fernando Pessoa), Livro do Desassossego

 

No final do séc. XX – passado –, havia consenso entre antropologistas que as capacidades que definem o ser humano, por contraste com os outros seres vivos, são: (1) consciência de si próprio, (2) deter um sentido universal do Bem, do Belo e do Verdadeiro, (3) utilizar e desenvolver linguagens e (4) capacidade de imaginar o futuro.

O futuro é, por definição, o “tempo que se segue ao presente”. É o conjunto ou sistema, de factos, acontecimentos, pensamentos e narrativas referidos ao que há de vir. O antepositivo futur-, do lat. futurus, a, um, “que há de ser, que deverá estar, que há de acontecer, ou suceder”, “destinado a ser”, do radical indo-europeu *bheue-, “crescer”, regista vinte e sete vocábulos portugueses desde o séc. XVI. Futuro absoluto é, no contínuo espaço-tempo, região limitada pelo cone da luz na qual a coordenada tempo é positiva. Futurismo é o movimento estético e literário lançado por Martinetti, em Itália, em 1909, que exalta a originalidade da vida moderna, rejeitando o passado e tudo quanto é tradicional (chegou a Portugal e Fernando Pessoa reviu-se nele).

O futuro como dimensão do tempo é concebido ou circularmente, como no mito do “eterno retorno”, ou linearmente, quando se diz que conhecer é prever. No último caso, pode ser representado por uma ampulheta. É um tempo dividido, no qual há “grânulos” que estão na parte superior e vão caindo para a inferior, através de um canal de ligação. E pode perguntar-se se os grânulos que estão em cima são do passado ou do futuro? Os hebreus concebiam o tempo em função do futuro, os gregos em função do presente. Para Platão, no Timeu, “o tempo é a imagem móvel da eternidade”. Aristóteles, na Física, alicerça o tempo no conceito de movimento e refere a necessidade de se considerar o “antes” o “agora” e o “depois”. Os conceitos de tempo e movimento estão amarrados um ao outro. Medimos o tempo pelo movimento e o movimento pelo tempo. Plotino acrescentou que é a consciência que mede o tempo. A imagem móvel da eternidade de Platão tem a sua sede na psique (alma). Quando os teólogos cristãos se começam a debruçar sobre estas questões, Sto. Agostinho avança que o tempo é paradoxal: é um “será” que ainda não é. Não há presente, é já passado, não há ainda futuro, portanto não há tempo.

Os paradoxos do tempo já tinham sido entrevistos pelos gregos, nomeadamente Zenão de Eleia. São exemplos Aquiles e a Tartaruga, a seta que nunca atinge o alvo… Para Aristóteles são argumentos falsos, pois apoiam-se numa representação do tempo constituído por uma soma de instantes. O que é mais curioso é que na atual teoria do multiverso se pode considerar o espaço-tempo como granular!

No “labirinto da memória”, expressão de Santo Agostinho, a Esperança é um sentimento de futuro. É ver como possível a realização do que se almeja. No Cristianismo, é a segunda das Três Virtudes teologais, entre a Fé e a Caridade. O vocábulo surge, em português, no séc. XIII, também pela pena de D. Dinis, no Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Esperar, do lat. sperare, “esperar, aguardar”, é usado em 1534 por Gil Vicente no Auto da Cananea. Iconograficamente, a esperança é representada por uma âncora, um sinal de estabilidade. No séc. II encontram-se âncoras nos cemitérios cristãos sobre as sepulturas, onde só muito mais tarde aparecerão as cruzes.

Âncora, do lat. ancora, do gr. ágkura, do radical indo-europeu *ank- “dobrar, torcer”. Desde a Antiguidade que a âncora era símbolo do deus do mar. Prometia estabilidade e segurança e daí que se tenha tornado símbolo da Fé e da Esperança. Almejar o futuro é como levantar ferro e aventurar-se no ignoto, na esperança de ver realizados os nossos sonhos mais secretos.

Prever o futuro acontece no nosso íntimo, na relação com outrem, em grupo, na pólis, na comunidade, no mundo… Há quem viva a fazer previsões: do futebol à política, do mago à revista cor de rosa. De facto, as previsões que julgamos nossas tendem a ser uma recapitulação das que provém dos nossos grupos de referência ou de pertença. É neste contexto que emerge a adivinhação, o presságio, o augúrio, o pressentimento, bem como o prognóstico e a profecia. Na Grécia Antiga, no templo de Delfos, a pitonisa sob a influência de fumos embriagadores respondia delirantemente a quem a consultava. As respostas eram traduzidas em versos hexâmetros, de significado ambíguo e suscetíveis de mais de uma interpretação. Quando o rei Crasso perguntou se deveria fazer a guerra aos persas, recebeu a resposta de que ao fazê-lo destruiria um grande império. E aconteceu que o império destruído foi o seu!… Também os cônsules romanos, antes de partirem com as legiões em campanha, convocavam sempre um áugure para que adivinhasse o futuro, inferindo os desígnios dos deuses do voo e do canto das aves.

Futurologia é um vocábulo forjado em 1943, por O.K. Flechtheim, para designar os estudos que tratam das possibilidades futuras, levando em conta as tendências do presente. Alvin Toffler (1970) em O Choque do Futuro, propôs, arrojadamente, que o ritmo acelerado da mudança tecnológica e social, de uma sociedade industrial para uma sociedade “super-industrial”, iria abalar as pessoas e levá-las a sofrer “stresse e desorientação”. Hoje caracterizaríamos a nova filosofia da ciência do artificial, pela alteração das formas de comunicação, sobretudo ao nível interpessoal e embarcamos facilmente em previsões mirabolantes, que nos fascinam. No entanto transportam um laivo de ansiedade. É este o caso da Inteligência Artificial.

Psicologicamente, o futuro não existe, só o passado é real, isto é, pode resistir à nossa vontade. Mesmo não existindo, o futuro tem valor. Em todos os casos, considerar o futuro é uma forma de prolongar o conhecimento que se tem do presente e do passado. – Desde que me lembro, ano após ano, ouço dizer que “o Brasil é um país de futuro!…”

Racionalmente não há futuro! Não há presente! Quando pensamos, seja o que for, é verdade que o pensamos numa direção entre passado e futuro, mas em termos neuropsicológicos, para que tal pensamento possa acontecer, tem de haver já uma representação (imagem) na memória imediatíssima. É uma questão de milissegundos, mas é assim que operamos. Quando realizamos uma tarefa, que só vagamente consciencializamos, para a qual nos basta o Einstellung (set, prontidão), fruto de um instinto ou de um hábito arreigado, a melhor aposta que podemos fazer sobre o futuro é que ele é um prolongamento do passado imediato. Não “retrocedemos” em termos de pensamento consciente, porque um sentimento de poder nos basta. Uma das grandes conquistas humanas ocorre quando a criança diz a quem a quer ajudar “Não é preciso, eu já sou capaz!” – Não escape a implicação que ela esboça aqui uma previsão de futuro…

O que por vezes se esquece é que a previsão é o recurso central da investigação experimental. Aliás, toda a investigação empírica é virada para o futuro. A partir da observação do mundo, da revisão do conhecimento adquirido ou das teorias existentes, o cientista formula o problema. Para o resolver propõe uma hipótese inerente a uma teoria existente ou a desenvolver e faz a previsão sob a forma: se num dado local e momento se produzir um efeito sobre um objeto ou um sujeito, aquele será precisamente uma variação limitada do real presente. Daqui decorre que o critério intemporal de certeza (e não necessariamente de verdade) reside sempre no futuro e também sob a forma de probabilidade.

Foi o cavaleiro de Méré, um jogador inveterado, quem escreveu uma carta a Blaise Pascal, perguntando-lhe como haveria de ganhar sempre? A resposta contém, nada mais nada menos, que a base da teoria matemática das probabilidades, que veio a alicerçar a teoria estatística começada também no séc. XVII por J. Graunt, comerciante de Londres. A estatística tem por objeto a recolha e interpretação de dados numéricos. Nascida no campo da observação dos factos sociais, estendeu-se a todos os domínios científicos, até mesmo à Física, mas ainda há quem acredite que ela pode prever futuros. São os economistas e todos os que aderem à lei da necessidade mecânica de Demócrito (“todo o efeito tem uma causa”), tida como o sustentáculo do monismo materialista. — Se estivermos na posse de todas as causas, podemos prever sempre, ontem, hoje e amanhã, os segredos do universo. Contudo, todos os acontecimentos nele dependem não apenas da necessidade, mas também do acaso!

Com o surgimento, no pós-guerra, da teoria matemática das comunicações, de Claude Shannon, a informação tornou-se central na Era da Incerteza — Informação é o inverso da incerteza, pois é tudo aquilo que permite anular a incerteza presente. Ao criar-se uma medida da informação e teoremas pertinentes, avançou-se para um novo mundo… que ainda tem futuro.

O futuro é também incerto porque não se conseguem prever as descontinuidades na transformação conceptual e física. Avulta a teoria das catástrofes, que exprime o equilíbrio instável de trajetórias sobre a “aresta do caos”. São situações em que o mínimo desvio pode produzir um desmesurado efeito.

Meio a brincar, leia-se a conversação que se segue:

  • — Frederico, espero que vivas até aos cem, mais três meses.
    — Obrigado, Alexandre, mas porquê os três meses?
    — Não quero que morras de repente.

A anedota acima consta do livro de T. Cathcart e D. Klein (2006), Plato and a Platipus Walk Into a Bar…: Understanding Philosofy Trough Jokes, invocando o Ser e o Tempo de Heidegger, quando discute o “nada” como uma “coisa” estranha. Mais estranha ainda é essa “coisa” chamada futuro…

Orlindo Gouveia Pereira, MD, PhD
Médico Psiquiatra, Professor Emérito de Psicologia da Arte