Ser professor no mundo das telas
Um rapaz foi a uma consulta médica:
— “Doutor, não sei o que está acontecendo comigo: tenho tido muita dificuldade de levantar minha cabeça, meu pescoço dói, tenho dificuldade para falar com outras pessoas porque eu não consigo prestar atenção nelas. Doutor, o que eu tenho?”
—”Um Smartphone”
Isso é e não é uma brincadeira, é mais um paradoxo, porque é ao mesmo tempo risível e sério e nossa época é perpassada por esse paradoxo!
O telefone celular (telemóvel) é o grande símbolo de uma das maiores mudanças sociais da história humana: a sobreposição do mundo digital ao mundo das coisas.
Desde os primórdios da espécie, a vida humana sempre se estruturou, em cima de “coisas” (corpos, alimentos, cidades, moradias etc. etc.) que têm consistência e forma e nos dão a sensação de estabilidade do ambiente. Nas últimas décadas, a essa “ordem das coisas”, vem-se sobrepondo a ordem digital onde as coisas são misturadas e, muitas vezes, suplantadas pelas informações que, por não terem consistência nem forma, são “não coisas”. As informações, essas não coisas, são hoje tão ou mais determinantes para a vida do que as coisas.
A marca maior do mundo digital atual são as redes sociais que, além de veicularem uma quantidade quase infinita de informações são estruturas frágeis que se fazem e se desfazem continuamente, tendendo a instabilizar o ambiente social.
O termo “google”, criado em 1998 por Larry Page e Sergey Brin para nomear o mais famoso motor de busca contemporâneo de informações, deriva de um outro termo – googol – inventado em 1938 por uma criança de nove anos (Milton Sirotta), para definir o maior número que ele acreditava que existisse. Sirotta chamou de googol o número 1 seguido por 100 zeros, número que hoje é, curiosamente, chamado de dez duotrigintilhões. Essa quantidade avassaladora de informações circula nas redes sociais, através principalmente dos telefones celulares.
Uma outra característica que fundamenta as redes sociais: elas são aditivas e não narrativas; a imensa maioria das informações que circula nelas são unidades descontínuas que têm uma curta margem de atualidade. Além disso, por não serem narrativas, as informações que circulam nas redes sociais não costumam criar “histórias contextualizadas”. (Han B.C. 2022)
Esse somatório de informações excessivas, de fragilidade estrutural e de incapacidade narrativa, costuma colocar nosso sistema cognitivo em desassossego. Esse desassossego é particularmente evidente entre os mais jovens que nasceram no mundo das redes sociais.
As redes sociais e os danos à atenção
Em que consiste esse desassossego cognitivo e qual sua implicação para os processos pedagógicos contemporâneos?
Para tornar mais claro esse desassossego, precisamos de uma breve reflexão sobre um dos processos cognitivos mais importantes, a Percepção Humana, resultado da ação combinada e coordenada de sensações, de atenção e de memória.
Essa ação combinada e coordenada de sensações, atenção e memória se torna clara se pensarmos numa situação banal de nosso cotidiano: o que ocorre cognitivamente quando colocamos a mão dentro de uma bolsa à procura de uma chave?
Através da atenção seletiva, quando tocamos no “objeto procurado” fazemos uma distinção “seletiva” das sensações: em meio a muitas sensações, distinguimos e damos atenção a algumas sensações específicas (forma, consistência etc.)
A seguir, inconscientemente, comparamos essas sensações como o nosso acervo de memórias (memória de uma chave). Se houver o acoplamento estrutural, ou seja, se as sensações tiverem “correspondência” na memória, a experiência passa a ter sentido, e nos sentiremos aptos para nomear o objeto: chave! Nomear, nesse contexto, significa mais do que colocar o nome “chave”, significa colocar o objeto no território conceitual, compreensível, que faz sentido naquele momento para sentirmos que “encontramos a chave”.
Sempre que nomeamos alguma coisa temos uma agradável sensação de estabilização, de apropriação (“é isso!”), daquilo que foi percebido.
Em situações em que não conseguimos nomear, não há percepção estável; a experiência pode não fazer sentido e experimentamos uma sensação desagradável de instabilidade, uma tensão de incompletude. Todo aprendizado começa em uma tensão de incompletude, classicamente chamada de “acomodação”, e se conclui com a “assimilação” do conhecimento, como nos disse Piaget.
Feita esse breve reflexão, retornamos ao mundo digital contemporâneo com o excesso de informações algo que, inevitavelmente, leva à metáfora do “tsunami de informações” que afoga nossa atenção. Afogados nas informações e sem ter onde estabilizar nossa atenção, entramos em desassossego cognitivo.
Uma das principais características desse desassossego é a substituição da atenção sustentada pela atenção cinética (termo criado pela psicóloga Gloria Mark, 2023
Com a nossa atenção está sustentada, conseguimos manter o foco da atenção por períodos prolongados (às vezes por horas!) e, com frequência, nos sentimos prazerosamente imersos no que estamos fazendo. A atenção sustentada está presente na leitura de um romance, quando estamos assistindo um espetáculo e em situações equivalentes.
É importante salientar que, mesmo com a atenção sustentada ativa, algum grau de oscilação do foco – “desatenção”, é natural e desejável. Há quem proponha que a criatividade é estimulada por estas oscilações normais do foco da atenção.
Por outro lado, se estamos usando predominantemente a atenção cinética não conseguimos fixar o foco por um tempo em geral mensurável em segundos e nossa atenção se desloca ininterruptamente de um foco a outro gerando cansaço e ansiedade. Quando estamos mergulhados nas redes sociais indo do computador ao celular, do WhatsApp ao Instagram, do Instagram ao YouTube, e assim por diante ficando pouco tempo em cada coisa, usamos predominantemente a atenção cinética, que, mais que tudo, é um estado de desatenção prolongado, que dificulta a estabilidade do pensamento e das relações sociais e tem potenciais implicações emocionais.
Quando estamos imersos na atenção cinética, podemos comparar nosso foco de atenção a um objeto flutuando num rio de águas agitadas, cuja instabilidade estrutural prejudica muito a capacidade de completar tarefas. Quanto mais nossa atenção for interrompida por estímulos externos, maior é a chance de que se distraia também com estímulos internos e se entre num quadro de alguma confusão mental.
Importantes estudos neurocientíficos contemporâneos têm sugerido que o consumo excessivo e fragmentado de informações tem efeitos fisiológicos sobre o cérebro, com alterações no processo de autocontrole (ligado ao Córtex Cingulado Dorsal), no processo de tomada de decisões e formação de memórias (Córtex Orbito Frontal) e no sistema que controla a liberação de dopamina (Área Tegmental Ventral) com consequentes alterações no humor. (Su, C. 2021)
Outra consequência séria da leitura excessivamente prolongada de telas é o aumento no diâmetro dos olhos o que pode gerar miopia. Isso justifica o aumento expressivo do número de crianças e jovens com miopia nas últimas décadas. (Gomes ACG 2020)
Por outro lado – e isso é muito importante – muito estudos sugerem que o uso moderado de telas e das redes sociais não trazem problemas e podem ser integrados de modo muito útil à vida, especialmente quando acompanhados de prazer genuíno. A interposição de períodos de descanso mental e de atividades prazerosas tem um papel fundamental no equilíbrio fisiológico e existencial das pessoas. (Morris, R. 2023)
Ser professor no mundo das redes sociais e da atenção cinética – relembrando o que estabiliza a atenção
A tarefa de um professor é multifacetada e difícil de ser delimitada. Genericamente falando, cabe ao professor guiar, orientar e ajudar o aluno a desenvolver habilidades, conhecimentos e competências. Mas, acima de tudo, a grande tarefa de um professor deve ser ajudar o aluno a desenvolver sua autonomia como pessoa. A base para tudo isso é a relação professor/aluno – quanto maior o grau de confiança mútua aluno/professor, mais eficaz será a interação e os resultados[B1] .
Aqui estão algumas reflexões / provocações para relembrar como um professor pode chamar e aquietar a atenção.
O que mais motiva o aluno é a motivação do professor.
A motivação interna (ou intrínseca) é o conjunto de emoções e pensamentos que nos faz desejar ou ter prazer em fazer alguma coisa. Uma pessoa não pode atuar diretamente na motivação interna de outra pessoa, mas se estamos motivados estimulamos outros a estarem também. Daí a ideia de que o que mais motiva o aluno é a motivação do professor. Ensinar será tão mais efetivo quanto mais motivador for o ambiente pedagógico.
Respeitar o outro como “legítimo outro”
Como dizia Humberto Maturana (2002), considerar o outro como legítimo é consolidar o respeito pelo outro sem querer que o outro seja como eu; é aceitar as diferenças como legítimas e dar sentido prático à palavra “respeito”. Tratar o outro com respeito, reconhecendo a autenticidade de sua individualidade é uma demonstração de afeto. O afeto e o respeito são motores do desenvolvimento humano; trocas intersubjetivas mediadas pelo afeto acalmam, estimulam e criam vínculos que organizam a atenção e a cognição. Um aluno acolhido e respeitado é um aluno estimulado e mais propenso ao aprendizado. O que é mais afetivo é mais efetivo!
O que é mais fácil de aprender é aquilo que nos ajuda a viver e o que nos dá prazer.
Tentar perceber as demandas atuais do aluno faz toda a diferença.
Educar ou instruir.
Existem duas abordagens pedagógicas fundamentais: a que educa e a que instrui. Educar (e + ducere) significa conduzir, estimular o crescimento; instruir (in + struere) significa ajuntar, colocar uma coisa sobre a outra.
Educar e instruir são ações igualmente importantes e complementares, embora tenham diferenças significativas. Para instruir, o foco do professor deve estar mais na informação; para educar o foco deve estar mais no processo do aprendizado.
Lembre-se que a palavra Pedagogo (paidós = criança + agein = condutor) significa originalmente “aquele que conduz a criança”
Causar surpresa ou espanto!
Surpreender com aquilo que não se espera chama a atenção e estimula o engajamento. A surpresa e o espanto pelo inesperado é, talvez, um dos mais eficientes atratores da atenção e um grande motivador do aprendizado. A focalização da atenção e o estabelecimento da atenção sustentada, é um fator importante para o desenvolvimento do autocontrole e para a formação de memórias. Deve fazer parte da preparação de uma aula a criação de estratégias que instiguem a imaginação do aluno – o inesperado rompe com o lugar comum.
“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas … o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado, só pode ser encorajado” (Rubem Alves, 2014).
A atuação do professor e da escola pode limitar o aluno ou pode dar-lhe recursos, estímulos e coragem para viver e crescer. Nós fazemos a escolha.
Ensinar é sempre um desafio. Um ensino efetivo implica na integração da motivação, da atenção, do respeito e do prazer. A tecnologia atual é uma extraordinária aliada do professor, mas cobra seu preço com a deterioração da atenção. Cabe a nós professores sermos, cada vez mais, atratores da atenção.
João Gabriel Marques Fonseca, músico e médico.
Professor da Escola de Música e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
Referências
- Alves, Rubem: Gaiolas ou Asas? In Alves Rubem Por uma Educação Romântica. Papirus Editora. São Paulo, 2014
- Gomes, A.C.G. et al.: Miopia causada pelo uso de telas de aparelhos eletrônicos: uma revisão de literatura. Rev. bras.oftalmol. 79 (5) • Sep-Oct 2020 • https://doi.org/10.5935/0034-7280.20200077
- Han, Byung-Chul. Não Coisas. Editora Vozes. Petrópolis, 2022
- Mark, Gloria. Attention Span. Harper Collins Publishers, 2023
- Morris, R.; Moretta, T.; et al: The Psychobiology of Problematic Use of Social Media Current behavioral neuroscience reports, 2023-12, Vol.10 (4), p.65-74
- Maturana, Humberto. Emoções e Linguagem na educação e na política. Editora UFMG. Belo Horizonte, 2002
- Su, C. Zhou, H. et al: Viewing personalized video clips recommended by TikTok activates default mode network and ventral tegmental área. https://doi.org/10.1016/j.neuroimage.2021.118136