O Pianoscópio, “laboratório-fábrica de sons” que a CMT inventou há vários anos, tem-nos levado a muitos lugares. Reais e Imaginários. A sua passagem pela Fábrica Centro Ciência Viva de Aveiro foi determinante e o “regresso imaterial”, na forma de uma exposição retrospectiva, na Fábrica, integrado na série Perspetivas Arte e Ciência, pretende mostrar alguns dos “territórios” desvendados ao longo dos últimos anos. Espaços férteis onde a arte, ciência, educação e comunidade se interligam, onde se questionam ideias, se fazem experiências e se exploram possibilidades.
Em 2011 a Companhia de Música Teatral (CMT) criou Anatomia do Piano, um espetáculo que abordava o “instrumento que será talvez o mais influente da história da música ocidental” de forma pouco habitual. Envolvia dois intérpretes que exploravam territórios do teatro e dança a partir de um fio condutor musical sólido, com o piano a ser usado de forma convencional mas também recorrendo a técnicas de “piano aumentado” e “piano preparado”, permitindo explorar diferentes sonoridades durante a peça. O espetáculo baseava-se na ideia de revelar o interior do instrumento, como se uma “cirurgia metafórica” ocorresse no palco e permitisse descobrir o piano como “lugar, ser vivo, escultura, palco, casa onde a música habita”. Anatomia do Piano convidava o público a “entrar” no piano e descobrir detalhes que normalmente não são vistos, criando mundos imaginários onde as fronteiras entre as várias artes se esbatem. Propunha uma viagem num território poético que está normalmente ausente nas propostas artísticas para crianças, fazendo com que o Piano fosse o protagonista de uma obra de “arte total”. No final das apresentações o público frequentemente subia ao palco para ver “de perto” algumas das peculiaridades que o espetáculo tinha mostrado e ficou evidente que essa curiosidade e desejo de experimentar deveria originar uma outra ideia que permitisse que o público, e em particular as crianças, pudesse ser envolvido numa experiência prática, coletiva e participativa à volta do piano. E foi assim que o Pianoscópio se originou.
Uma equipa artística multidisciplinar trabalhou na criaçãode uma versão inicial do projeto, para ser estreada no Festival BIG BANG no Centro Cultural de Belém (CCB) em Lisboa, em 2013. O Pianoscópio baseava-se na ideia de “desconstruir” o piano e assim contribuir para a construção de uma visão mais profunda sobre a música, proporcionando uma oportunidade de descoberta e de expressão. O Pianoscópio procurava também desafiar algumas convenções acerca da Música, “transformando o piano num instrumento coletivo, uma instalação/escultura capaz de produzir sons de imensas cores, um espaço para ser habitado por pessoas e soar em função das interações entre elas”. Foi pensado para funcionar em diferentes situações: a) como uma instalação interativa que podia ser visitada e explorada por qualquer pessoa; b) como uma série de recursos e ideias que pudessem servir de base para um workshop centrado não só na exploração dos recursos sonoros, mas, sobretudo, na construção de peças de música que, tendo uma base pré-definida, se desenvolviam através da improvisação; c) como um recurso que pudesse permitir a realização de projetos de média e longa duração, com foco na música mas permitindo explorar outras linguagens artísticas e áreas do conhecimento, bem como desenvolver competências sociais como comunicação e cooperação. O Pianoscópio foi inicialmente pensado para escolas, famílias e grupos mistos a partir dos seis anos de idade, mas, com o tempo, percebeu-se que permitia criar desafios interessantes para o trabalho com músicos profissionais, artistas, educadores e comunidades.
Depois do CCB, o Pianoscópio teve uma residência de longa duração (mais de 3 anos) na Fábrica Centro Ciência Viva de Aveiro (Fábrica), o centro de divulgação de ciência que resulta da parceria entre a Universidade de Aveiro e a Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, como parte integrante das suas exposições permanentes. O Pianoscópio amadureceu na Fábrica: incorporou elementos adicionais na sua identidade tecnológica / digital, e tornou-se num verdadeiro laboratório de atividades em arte e ciência. Acolheu um conjunto abrangente de experiências e públicos, desde workshops com crianças a performances e gravações com artistas profissionais, projetos participativos e de arte comunitária, aulas de diferentes disciplinas da UA, predominantemente associadas a abordagens “criativas”, “holísticas” e “colaborativas” de uma “matéria sonora” que pode ser explorada e moldada por pessoas muito diversas.
Desde 2020 o Pianoscópio reside em permanência na Academia Internacional de Marvão para a Música, Artes e Ciências (AIMMAC), no seguimento da participação na sexta edição do Festival Internacional de Música de Marvão. Entre 2021 e 2024 o Pianoscópio foi um elemento importante do projeto Deep Listening, Deep Sea(ing), um conjunto de iniciativas que pretendia contribuir para a consciência da importância do oceano profundo. O projeto envolveu artistas, cientistas e educadores na criação de experiências artísticas com crianças e adolescentes a partir de imagens / filmes recolhidos em expedições científicas ao mar profundo. “Imaginar” a paisagem sonora dum universo praticamente desconhecido é um desafio fascinante e o primeiro passo, Missão Mar Profundo #1 , envolveu o Pianoscópio como “fábrica de sons” onde se desenvolveram recursos sonoros originais que deram origem a um “vocabulário sonoro” que foi disponibilizado numa “biblioteca” aberta. Este material sonoro foi posteriormente utilizado em experiências artísticas mediadas por tecnologia, na Fábrica Centro Ciência Viva de Aveiro, onde adolescentes e professores exploram diferentes formas de relacionar som/música e imagens. Esta abordagem “mãos na massa” foi complementada por conferências de artistas e cientistas, bem como por performances e exposições de resultados (Missão Mar Profundo, #2, #3, #4 and #5).
O Pianoscópio tem-nos levado a muitos lugares. Reais e Imaginários. As “expedições pianoscópicas” do CCB, Fábrica e AIMMA passaram também pelo DeCA-Universidade de Aveiro, Museu de Etnomúsica da Bairrada, Festival Som Riscado-Loulé e Universidade de Évora, por exemplo, e foram relatadas em conferências e publicações. As “viagens” mais importantes são, porventura, as que ocorrem nos corpos, olhos, ouvidos e mentes dos que embarcam, participantes ou ouvintes, à descoberta dos espaços férteis onde a arte, ciência, educação e comunidade se interligam, onde se questionam ideias, se fazem experiências e se exploram possibilidades. O CD DBW25 é um exemplo recente das “janelas” abertas pelo Pianoscópio. É uma deambulação, uma viagem por várias constelações do Universo-CMT, um “universo em expansão”, que tem na criação artística a sua fonte de pulsação e que é parte de um universo mais vasto e infinito, o da Música: fruição, expressão, comunicação, arte, ferramenta, elemento de construção de identidades, fator de desenvolvimento humano e muito mais. A decisão de gravar, no Pianoscópio, alguns dos encontros entre música e palavras que aconteceram em espetáculos, projetos participativos e instalações ao longo de 25 anos de atividade regular, originou um “arte-facto” que é um convite a mais uma viagem de descoberta. É o que acontece com as viagens que decorrem na paisagem imaginária: umas levam a outras.