A inúmera mão e a voz comum: elementos para pensar a criatividade
O XIV Encontro Internacional Arte para a Infância e Desenvolvimento Social e Humano decorreu a 23 de novembro na Fundação Gulbenkian, sob o desígnio da liberdade. De megafone em mão, falou-se de música, de crianças, de aprendizagem, de escuta e do futuro.
2024 não foi um ano qualquer. E dizê-lo ultrapassa qualquer impulso retórico. 2024 foi o ano em que a Revolução dos Cravos fez 50 anos e, por isso, pensar na importância da liberdade torna-se hoje mais urgente do que nunca. No início do XIV Encontro Internacional Arte para a Infância e Desenvolvimento Social e Humano, Helena Rodrigues — investigadora do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa e uma das organizadoras da iniciativa — disse-o claramente, sublinhando a fragilidade de uma liberdade “que temos de cuidar e preservar”. “São estes os valores que queremos trazer para aqui: liberdade, afeto, cuidado, amor.”
Além do meio século passado desde que o 25 de Abril aconteceu em Portugal, outra data de relevo se prende à realização deste Encontro. Trata-se dos 25 anos da Companhia de Música Teatral, que o promove, com o apoio da Fundação Gulbenkian. 25 anos que constituem “uma festa que queremos partilhar, agradecendo a todos os que, de diversas formas, fizeram parte do percurso”. A “inúmera mão” do poema de Ruy Belo que representa, na verdade, os muitos corpos envolvidos ao longo dos anos no projeto.
Para Paulo Ferreira Rodrigues, professor da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa e também um dos organizadores, este Encontro insta, a cada ano, a começar de novo. “Colocamos de novo as mesmas perguntas”, diz ele, lembrando também as muitas contribuições que têm garantido, de modo constante, a sua realização. Houve pelo caminho algumas perdas, e desta vez quer-se evocar a memória de um dos seus grandes inspiradores, Colwyn Trevarthen, falecido a 1 de julho.
Escutar o mundo
O primeiro palestrante é João Maria André, que traz uma proposta intitulada “Escuta, hospitalidade e a arte do diálogo”. O professor catedrático aposentado de Filosofia, doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, quer abordar alguns equívocos existentes em torno do trabalho com a infância, “muitas vezes associado a conceitos como educação e ensino, como se quem o faz fosse detentor de um pretenso saber” suscetível de ser ‘ensinado’. Este modelo que privilegia a dimensão recetiva do processo “tem vindo a ser questionado”, recorda ele, convidando os mais velhos a “descerem do seu pedestal”.
Porque é disso que se trata quando se fala do primeiro dos termos propostos: a escuta, nem sempre considerada como uma capacidade ao mesmo nível do olhar. “O olhar tem tido um primado na cultura ocidental. Mas a visão é um sentido dominador, ao serviço de universos concentracionários. É pelo olhar e pela vigilância que se exerce o poder”, diz este docente, notando como o olhar “abafa os outros sentidos” e como a educação tem vindo a ser ligada à vigilância.
A este modelo, João Maria André contrapõe o da escuta. “Ouvir é acolhedor, não impõe. Abre-se ao mundo holisticamente, potenciando a comunicação com os outros. O olhar torna o outro objeto, o ouvido torna o outro um sujeito.” Mas ouvir, apesar de tudo, é uma ação mecânica. Para exercer a escuta – “a ressonância do que se ouve dentro do sujeito” – há que dar um passo em frente. “Quem” ou o “que” se escuta? A palavra ampliada para fora de si, uma palavra “que é aberta, e não um exercício de poder.” Escuta-se também o silêncio, porque sem esse reverso, “a enunciação é impensável”. Escutam-se a música e o mundo, assim como os pensamentos que eles geram – porque “a escuta não se esgota na materialidade física dos sons e das palavras” e disso é prova a própria infância que ainda não os domina racionalmente e, no entanto, os consegue escutar.
E como se escuta? “Com disponibilidade, com o sentimento do encontro, com humildade.” E com “o que” escuta? “Com todos os sentidos, ouvindo como quem vê, sinestesicamente. Porque a escuta não é um ato provisório, pontual. É uma condição que modela os outros sentidos. A condição para que a formação e a arte se cumpram em nós.”
Quando João Maria André passa para o segundo dos conceitos por si apresentados no título da sua intervenção, já estamos avisados. O seu é um convite ao pensamento. A defesa do primado da escuta no ato formativo e criativo “é um exercício de hospitalidade”, que traduz uma atitude de acolhimento do outro. Para a epistemologia, ‘hospitalidade’ implica “que a procura da verdade se faz pela complementaridade e não pela exclusão”. Se ninguém possuir a verdade toda, “cada pessoa na sua diferença pode ter a sua parcela de verdade”. Neste sentido, “uma epistemologia hospitaleira sabe que a verdade é estereoscópica” nas suas inúmeras faces.
Do ponto de vista antropológico, a hospitalidade “assenta na estrutura relacional do ser humano”. Isto quer dizer que a nossa existência, por natureza dialógica, é acima de tudo um “ser com”. Longe de sermos átomos ou esferas fechadas, somos em comunhão com os outros – essa é a nossa identidade. Já numa perspetiva ética, a hospitalidade labora como uma “ética do cuidado”, atenta à singularidade, que “reclama uma prática preventiva e uma dimensão terapêutica e reparadora”. O cuidado possui, por sua vez, quatro momentos distintos, que João Maria André prefere citar em inglês – ‘caring about’, ‘taking care of’, ‘care giving’ e ‘care receiving’ – e cuja importância no processo formativo é capital.
Por fim, o filósofo vai adentrar-se naquilo a que denomina a “arte do diálogo”, último patamar de reflexão que só acontece graças aos anteriores. Mas ‘diálogo’ é um termo que tem duas componentes, a dialética e a dialógica. E não é na primeira – que acentua as contradições e o confronto – que deve radicar o esforço da arte e da educação. Estas devem ser orientadas pelo ‘diálogo dialógico’, focado no enriquecimento mútuo das partes e pela singularidade de cada posição. “É aqui que se jogam os processos educativos”, num diálogo em que a dimensão cognitiva se encontra interligada com a afetiva ao ponto de não haver uma sem a outra. E que não se reduz à linguagem, abrindo-se ao corpo e às suas múltiplas expressões.
Existem, deste modo, oito princípios a ter em conta: a abertura ao outro e ao seu acolhimento como imperativo de uma ética da hospitalidade; a horizontalidade como forma de corrigir assimetrias; a humildade inerente ao encontro dos próprios limites; a ativação da escuta; a eliminação dos preconceitos e estereótipos que enviesam a compreensão mútua; a memória e a imaginação como operadores da criatividade artística; a atenção às múltiplas linguagens em que o ser humano se pode exprimir; e, por fim, a sinestesia, que reúne todos os princípios anteriores, contemplando a interação de todos os sentidos.
Semeando bambus
As mais de 70 pessoas presentes na sala da Gulbenkian e os 45 participantes via Zoom puderam, de seguida, ouvir Angelita Broock, professora na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do grupo Bambulha, um coletivo de estudantes e estagiários ligados ao Centro de Musicalização Integrada anexo à escola de música, onde estes ministram aulas, supervisionados pelos professores. Mas não só: o grupo tem uma componente de atendimento à comunidade que lhe fornece uma identidade muito própria.
“Não se trata de um simples bambu, mas de um bambuzal”, explica Angelita Broock, contando que a metáfora tem uma parte de realidade considerando que Bambulha nasceu mesmo num bambuzal adjacente à escola, no amplo espaço verde que a cerca. “E novos brotos vão crescendo” nele, tanto em termos de novos participantes quanto de projetos, integrados numa disciplina de Música Infantil e Produção Cultural que é optativa e de formação livre, e que se assume como “um espaço de discussão sobre o que é a música para a infância ao qual vem gente com várias bagagens e formações”.
No âmbito destas aulas, relata a docente, existe também um laboratório de criação, do qual faz parte uma apresentação final. “Há estudantes que fazem a disciplina várias vezes. Porque não há um processo unificado: cada turma perfaz o seu.” No fim, ela contará a história de uma criança de oito anos que uma vez criou uma canção sobre uma estrela cadente. Apresentada às restantes crianças, estas não se ficaram por aí, acrescentando-lhe o tema da morte e do tempo. E cantará para os presentes, pedindo que a acompanhem.
Moldar a (nossa) infância
Da Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge chega Pamela Burnard, convidando logo à ação. A professora de Artes, Criatividades e Educação distribuiu na sala uns fios de metal que se utilizam para limpar cânulas estreitas ou palhinhas e cuja manipulação permite o prazer de moldar, fundindo nesse movimento intenção e espontaneidade. “Estive nesta mesma sala há alguns anos, antes do Covid, e fiquei maravilhada com o espaço. Estar aqui num sábado de manhã e poder celebrar o que é ser humano e o que a natureza faz em nós é algo muito especial”, começou por dizer, explicando que a proposta de moldar aqueles fios prende-se com a ideia de que a escuta seja acompanhada pelo divertimento manual.
É nessa espontaneidade que radica toda a arte para a infância e o trabalho que em torno dela se pode desenvolver. O que valorizamos quando pensamos na arte para a infância? O fio de metal aqui trazido é metáfora para significar, por um lado, que o ato de esculpir, sendo feito no singular, por cada um de nós, representará a memória coletiva que dele viermos a extrair. Pamela Burnard , cuja intervenção recebeu o título de “Deixem as artes transformar: Defendendo práticas educativas implosivas”, está também a referir-se às publicações que estão a ser feitas na instituição a que está ligada. Jane Bennet, por exemplo, escreveu sobre o poder que as coisas simples assumem na infância e no modo como as crianças brincam.
“A própria materialidade tem uma vibração, as cores têm uma vibração, a sensação tem uma vibração que age em nós e que nos vai sintonizando enquanto corpos”, reflete Pamela, australiana a viver no Reino Unido e mãe de cinco filhos, e cujos pais, comentou, tiveram filhos cedo, sendo ela a mais tardia. “A minha mãe dizia que eu mudei a vida dela” e os bebés “mudam a vida das mães”. Dos seis irmãos, Pamela foi a única a sair da povoação da Austrália onde a família residia e a única a adquirir formação universitária. “Nasci sedenta, tinha um fogo na minha barriga e nas minhas entranhas. E queria mudar as coisas”, contrariar o mito sobre o que as mulheres e as crianças podem ou não fazer.
O que Pamela Burnard pretende é “celebrar o que as crianças podem fazer” e para isso partilha um vídeo “que é uma grande ideia”, sobre um projeto transgeracional promovido pela MyMachine Global Foundation, que se debruça sobre três aspetos: como as ideias das crianças são aplicadas numa perspetiva de grupo transdisciplinar; como as ideias delas unem, cooperam, inspiram e inovam em todos os sectores da educação; e como se edifica a confiança quando permitimos às crianças que as suas ideias façam a diferença. No vídeo apresentado, vemo-las a construírem máquinas que espelham o seu pensamento, ajudadas por cientistas, designers digitais. “Uma grande ideia pode juntar gerações. E não basta apenas ouvir, é preciso ser-se consequente em relação a essa escuta”, conclui a investigadora, que deixa um convite “para reavivarmos a nossa criatividade infantil”.
A palavra aos pássaros
E nada mais pertinente, após esta frase, do que rever o que foi o projeto Mil Pássaros realizado em Coimbra, pela mão de Ana Isabel Pereira, coordenadora do Grupo de Educação e Desenvolvimento Humano do CESEM e co-coordenadora da pós-graduação em Música na Infância: Intervenção e Investigação, na Universidade Nova de Lisboa. Uma das muitas constelações artístico-educativas da CMT, Mil Pássaros viajou até Coimbra e ali teve a participação de 48 turmas em 31 jardins de infância. Começou logo em janeiro de 2024 com o Encontro Arte-Ambiente, prosseguindo com o T.Lab Mil Pássaros – formação transitiva de seis horas -, o Canto dos Pássaros – formação de 25 horas -, o PaPI [Peça a Peça Itinerante] Opus 8, que é a peça artística central do projeto, as Oficinas dos Pássaros, o apoio online providenciado pelo Gabinete do Pássaro e, por fim, uma instalação no Convento de São Francisco que permaneceu aberta ao público até setembro.
“Tivemos uma equipa fortíssima no terreno”, diz Ana Isabel Pereira, referindo-se a Rita Roberto e a Mariana Vences, que dinamizaram as formações no Convento, a Patrícia Costa que liderou o Canto dos Pássaros e a Inês SiIva e Mariana Caldeira Pinto, que levaram o PaPI Opus 8 e as Oficinas dos Pássaros aos estabelecimentos escolares. Toda aquela comunidade, educadoras e crianças, esteve envolvida na elaboração dos orizuros – pássaros elaborados segundo a técnica japonesa do origami – que fizeram parte da instalação final, uma construção interativa que conta com uma parte sensorial reativa ao movimento.
No âmbito do projeto, não faltou um Gabinete do Pássaro, ideia surgida em 2021, na altura em que o Mil Pássaros se estreou na experiência das formações online. Nessa sequência, e orientado pela pergunta sobre como os participantes podiam continuar ligados entre si após as formações propriamente ditas, aparece este novo espaço, no qual os ‘guardiões’ – membros da equipa – tomam conta de um certo número de formandos, proporcionando-lhes um acompanhamento personalizado. Em Coimbra foram criados cinco gabinetes, nomeados segundo a técnica de pintura de orizuros utilizada por cada um dos grupos: o ninho dos mandriões, inspirado em Mondrian; o ninho dos que riscam e arriscam, para os que pintaram com lápis e canetas de espessuras diferentes; o ninho dos despistados, chamados a pintar com carrinhos de brincar; o ninho dos borrifados, que utilizou borrifadores; e o ninho dos mergulhões, que mergulhou a ponta dos orizuros em tinta.
Os Gabinetes do Pássaro estiveram disponíveis ao longo de todo o projeto para as educadoras entrarem em contacto com os seus guardiões via e-mail. Uma vertente do projeto que “foi muito importante”, diz Ana Isabel Pereira, para estudar o impacto do mesmo junto das educadoras em termos de desenvolvimento pessoal e profissional, isto é, “qual o impacto desta sensibilização no seu trabalho com as crianças”. Um questionário foi-lhes distribuído para recolher dados que permitirão avaliar os resultados. E uma das perguntas feitas recaiu sobre a utilidade real deste espaço de consulta. Algumas frases deixadas pelas educadoras, a seguir apresentadas, demonstram que foi crucial.
“O Gabinete do Pássaro fez-me sentir que não estava sozinha neste projeto, esclareceu dúvidas e resolveu problemas”, disse uma delas. “Os guardiões foram incansáveis”, disse outra. “O gabinete foi disponibilidade, apoio, simpatia, criatividade, motivação e gentileza”, opinou ainda outra, num apanhado que espelha uma tentativa de cuidar de quem cuida, de quem está no terreno e com um trabalho exigente entre mãos, como as educadoras de infância. Ana Isabel Pereira mostrou ainda o Diário de Bordo distribuído no início do projeto, com espaços em branco para serem preenchidos apenas no final. Elas escreveram o que lhes ia na alma. Falaram de sonho, de delicadeza, de surpresa, de imaginação. Será um testemunho para o futuro.
Um ano a constelar, sem paragens
Como tem sido habitual nestes Encontros, Paulo Maria Rodrigues, um dos fundadores da CMT, pronunciou-se sobre o que a Companhia fez ao longo de 2024. Numa apresentação intitulada “Afinar pessoas, pássaros e flores”, o compositor e professor auxiliar do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro começou por explicar as ideias fundamentais em que assenta o trabalho da CMT, referindo, como primeiro ponto, “um trabalho artístico pensado como se ocorresse num laboratório”. O termo ‘laboratório’ é aqui usado para representar experiências das quais resultam obras artísticas, que “são também oportunidades de observação de questões ligadas à comunicação humana através da arte”.
Outro conceito-chave é o de ‘constelação’: “Nós vimos de uma raiz musical, mas temos a apetência de querer chegar às instalações, aos workshops, à formação, às conferências, às edições. E a forma mais prática de imaginar aquilo que fazemos é falar de constelação, que é basicamente uma ideia desenvolvida de várias formas.” Para Paulo Maria Rodrigues, melhor do que falar de um trabalho no campo da música ou nas artes é falar “da fabricação de constelações e da afinação de pessoas, pássaros e flores”, num sentido em que ao trabalho artístico corresponde uma ética e a intenção, através da arte, provocar uma ‘afinação’ com o mundo que nos rodeia.
Ainda em 2023, após o Encontro anterior, regressou-se ao “Pianoscópio” em Marvão, uma instalação constituída “por pianos antigos e completamente decrépitos” e abordada também como um laboratório – isto é, como um “sítio onde se pode fazer música”. Em dezembro desse ano, nesse instrumento feito de instrumentos descartados que é o pianoscópio, gravou-se um disco intitulado “DBW 25”, que segundo o compositor “é um bocadinho estranho, porque por um lado tem a ver com música supostamente para crianças, mas pelo outro com sonoridades que tendemos a meter naquela gaveta da música experimental”. DBW, na prática, significa “do baú”, remetendo para o baú das memórias musicais “de onde trazemos elementos para fazer uma performance”.
Em 2024, a CMT voltou ao Fundão, que ao lado de Famalicão e de Loulé, é um dos municípios com os que mantém uma relação privilegiada. Esse regresso teve como objetivo a partilha de um documentário de Luís Margalhau sobre o projeto “Com Palavras Amo”, que decorreu em 2023, a partir da poesia de Eugénio de Andrade, de quem se celebrou o centenário, e chamando jovens e idosos a participar numa instalação que depois ficou patente na Moagem do Fundão.
Num registo diferente, teve lugar mais uma edição do projeto “O Céu por Cima de Cá”, “um dos mais complexos da Companhia”, desta vez em Aveiro. Trata-se de uma iniciativa cujo espectáculo final varia consoante os lugares onde é realizada, precedido por duas semanas de imersão profunda nos sons e imagens que o distinguem – incluindo uma expedição ao ponto mais alto da cidade, o edifício da Segurança Social ou a um cemitério de barcos em Ílhavo -, na escuta das suas vozes e ruídos característicos, na incursão aos seus arquivos. O que daí resulta é uma partitura nova que se acrescenta a outra já existente. “Se calhar reconhecem aqui a influência do Wim Wenders e das ‘Asas do Desejo’”, diz Paulo Maria Rodrigues, aludindo a uma das inspirações que alimentam o projeto.
Em Barcelos, voltou a acontecer a “Ornitópera”, antes de, “algures em setembro”, e por esta mesma peça, a CMT ser a CMT ser distinguida com o prémio Melhor Ópera e Prémio Escolha do Público dos Young Audiences Music Awards (YAMAwards) 2024 depois de ter sido nomeado nas categorias de Melhor Ópera e Melhor Agrupamento de Música de Câmara. “Não sei muito bem o que dizer sobre isto de ser a melhor ópera, porque não é de todo uma ópera, mas é uma ópera. É uma ópera no sentido da arte global, no sentido da música, com a sua ligação ao movimento, à encenação e à cenografia”, aclarou o compositor, notando que esta é uma das peças da Companhia criada para crianças muito pequenas e os seus acompanhantes e que, por isso, “funciona tanto com os mais novos quanto com os adultos”.
Em Évora, o PaPI Opus 7, inicialmente desenvolvido na Gulbenkian há anos, foi também realizado. Assim como em Famalicão resiste uma instalação plantada num parque público – o Parque da Devesa -, onde se continuam a fazer workshops denominados “Murmúrios das Árvores” e que faz justiça a uma tentativa de, através da arte, dar vida a uma árvore que morrera durante uma tempestade. “Transformamos essa árvore num conjunto de elementos escultóricos que produzem som e, portanto, qualquer pessoa pode usá-la”, explica Paulo. Há uma programação feita com escolas e infantários, tendo como fito “desenvolver a escuta, a relação com o meio ambiente e com a paisagem sonora que rodeia o espaço”. No mesmo registo, o Gamelão de Porcelana, que em 2011 esteve exposto no jardim da Gulbenkian, este ano continuou a circular, tendo encontrado poiso em Oeiras e Estarreja.
Alguns dos objetos criados pela Companhia passaram também pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado, integrando uma exposição mais abrangente que procurava explorar as relações entre ciência e arte. “Há todo um trabalho que tem sido feito de tentativa de observar o comportamento das crianças perante a experiência artística, chamado ‘Afinação do Olhar’, em que, ao longo de vários anos e de várias peças, temos filmado as reações das crianças, tentando catalogar e entender o que são esse tipo de reações”, explica o fundador da CMT. O resultado, publicado num paper, foi também disponibilizado em vídeo, “para que aqueles que trabalham com crianças estejam mais despertos para aquilo que pode ser a relação que a criança tem com a experiência artística”.
Retomando o projeto Mil Pássaros em Coimbra, já descrito neste Encontro, Paulo Maria Rodrigues aproveitou para recordar como nasceu: “Os pássaros são um bom indicador daquilo que se passa à nossa volta. Até 1940, os mineiros levavam consigo um canário, e quando este morria isso significava que a mina estava com monóxido de carbono a mais. Outro exemplo é o livro ‘Silent Spring’, que Rachel Carson escreveu porque houve uma Primavera em que não ouviu pássaros à sua volta, foi investigar e percebeu que nesse ano os pesticidas tinham matado uma grande quantidade de insetos.” Em 2024, houve uma instalação Mil Pássaros no Fundão, além de outra no âmbito do SenseSquared, um projeto Erasmus do qual a CMT fez parte nos últimos dois anos.
Para o final da intervenção ficam dois projetos. Um deles realizado em parceria com a ONG Vida, intitulado “UrGente”, e que levou os membros da Companhia a trabalhar com jovens artistas da Guiné-Bissau, culminando com a criação do primeiro Centro de Artes transdisciplinar daquele país, num antigo armazém que agora surge totalmente renovado. O outro é uma nova constelação nascida em 2024, cujo título, “A Liberdade a Passar por Aqui”, evoca os 50 anos da Revolução de Abril. Sob este ‘chapéu’ acomodam-se um espectáculo estreado no CCB, uma formação ou sessão de criação aberta, uma instalação sob a forma de mural — o “Mural da História Comum” — e um PaPI. “A liberdade tanto pode ser um pedaço de uma canção do Sérgio Godinho como um excerto de uma sinfonia de Beethoven. E, portanto, para este exercício de liberdade, nós convocamos várias influências que tivemos ao longo do tempo.”
Ver para transformar
Chegada a tarde, chega também o momento de assistir ao documentário “Mil Pássaros em Coimbra”, realizado por Luís Margalhau. E é a Pedro Florêncio, também cineasta além de professor em Ciências da Comunicação da Nova FCSH, que cabe fazer a apresentação. “O cinema faz-me pensar muito sobre a vida, e vice-versa. É um casamento complicado, assim como o do documentário e a ficção”, começa por dizer. Autor de uma tese de doutoramento sobre Frederick Wiseman, lembra que este documentarista norte-americano, nascido em 1930, sempre afirmou fazer, não documentário, mas ficção. Esse esbatimento de fronteiras não é o que se sente no filme de Margalhau, “que tinha uma incumbência e, no melhor dos sentidos, se limita a segui-la”. “O Luís faz parecer que tudo se passa numa semana, mas foram meses de captação. E o que fez foi abrir as portas para um mundo diferente daquele de todos os dias”, disse Pedro Florêncio.
O filme tem a ver com “o exercício da liberdade e a criação de possibilidades”, mostrando o modo como as distintas propostas do projeto “entrou nas escolas como vírus a tentarem que o mundo à volta os assimilasse”. E um aspeto que desperta a atenção é “o lugar das professoras seduzidas a participar no projeto, como vão ficando disponíveis e até que limites”. Pedro lembra o valor capital deste documentário, feito a partir do que foi observado em 48 salas da rede pré-escolar do Município de Coimbra: “seguir um projeto que restitui à escola” um papel perdido, pretendendo deixar disso uma memória.
“Mil Pássaros em Coimbra” testemunha o quanto a transformação das educadoras se reflete nas crianças com que diariamente contactam, num processo que veio de fora para dentro, provocando alterações nas rotinas que, na verdade, saíram de dentro delas.
Balbuciando se aprende
“Curiosidade e criatividade no desenvolvimento da aprendizagem vocal do canto dos pássaros e dos bebés” é o título da comunicação de Michael Goldstein, que participou no Encontro via Zoom. Este doutorado em Psicologia do Desenvolvimento e do Comportamento Animal e atualmente professor associado na Universidade de Cornell observou que um dos temas abordados no seu laboratório é o do desenvolvimento da comunicação nas crianças, juntando pais e filhos e observando como os segundos aprendem a vocalizar. Estes fazem-no por imitação, no âmbito de uma interação que gradualmente se torna cada vez mais complexa.
“Os sons dos pais provocam desenvolvimento e maturação no bebé”, que por sua vez eleva a fasquia e ‘empurra’ os pais a produzirem sons cada vez mais elaborados. Deste modo, a progressão vocal depende do ambiente que rodeia a criança, prendendo-se sobretudo com “as reações dos adultos relativamente às reações do bebé”. “Qual a função do balbuciar?”, questiona Michael Goldstein. “E como o bebé aprende a partir da reação que ele perceciona no adulto?” Dando a conhecer um vídeo no qual um bebé de cinco meses ‘conversa’ com a mãe, o investigador chama a atenção para o facto de a cuidadora estar inconscientemente ‘sincronizada’ com o bebé, e a comunicação e consequente progressão acontecerem de forma natural e despercebida.
Noutro vídeo mostrado ao auditório, os sons de um bebé de dez meses já possuem semelhanças com as palavras. “O balbuciar não é uma simples reação: é uma forma de aprendizagem. E os bebés esperam sons cada vez mais sofisticados e os pais sincronizam esta vontade de maturação com os bebés”, diz o investigador, que de seguida apresentou vários exemplos quantitativos da sua pesquisa. Neles, o que se conclui é que o balbuciar “não é linguagem simplificada” e que “a exploração vocal cria objetivos para aprender”. Acima de tudo, é preciso atender ao binómio previsibilidade/novidade: “Se a previsibilidade for muita e não houve novidade, o mundo torna-se plano. Se for pouca, não nos prende a atenção.”
Disto se depreende que “as crianças precisam de alguma previsibilidade”, pelo menos em 50 por cento da comunicação que com elas se estabelece. “Isso mantém-nas no jogo”, comenta Michael, para quem a melhor aprendizagem ocorre no grupo de “média previsibilidade dos impulsos”, isto é, em que tanto se valoriza a exposição a novos padrões fonológicos como à repetição dos já conhecidos. Ao longo deste treino, “nem o bebé está a tentar aprender, nem a mãe a ensinar”, numa comunicação que é, ao mesmo tempo, sincronizada e progressiva.
E se isto é válido para bebés, também o é para os pássaros, dirá Michael Goldstein. “Os bebés pássaros também cantam à espera de uma reação, e só aprende a piar o pássaro que recebe um feedback contingente.”
E de novo, escutar
E eis que, quase em resposta a esta questão, tem de seguida lugar o lançamento de “DBW 25”, o novo disco da CMT. Cabe à pianista e gestora cultural Gabriela Canavilhas abrir o caminho da escuta. O que primeiro a move é fazer o elogio do objeto físico, hoje em desuso, que retém a música, complementando-a com fotografias e textos. “O estranho título deste conjunto mágico de composições, que remete para um dispositivo exploratório espacial, tem na criação artística a sua fonte de pulsação”, prossegue, referindo-se às 33 peças que dele fazem parte. Trata-se de “uma viagem imaginativa e inovadora”, própria de uma CMT que há muito deixou de ser um laboratório e cuja visão musical “está consolidada”.
Gabriela Canavilhas dividirá as composições do CD em cinco grupos: aquele que representa a sonorização da natureza, o das palavras percutivas, o das narrativas dramatizadas e da teatralização do texto, o da canção harmónica e aquele em que a composição tem componentes multiculturais. E mostrará um a um exemplos desta categorização, dando a ouvir diferentes faixas do disco. Assim, a evocação da chuva é capaz de refletir o quanto a música dá a conhecer o mundo. Uma palavra pode ser encarada como elemento rítmico-musical. A música pode conter palavras não cantadas. “Este disco é um incentivo à criação livre e à liberdade, abraçando a complexidade e o imprevisto, reduzindo a resistência ao novo”, resume a pianista.
Tudo isto antes de Mariana Vences, artista da CMT, recitar um poema que, talvez, resuma o verdadeiro objetivo de aqui estarmos: “Era uma vez um país de céu azul, uma terra desigual onde poucos tinham muito.” Um país “amordaçado, sufocado pelo medo da censura”. Havia guerra e pés descalços, e analfabetos, e filhos morriam. Até surgirem cravos em vez de tiros. E o hoje que é construído sobre esse dia.
No final do Encontro, fomos chamados a construir. Foi distribuído um objeto com instruções precisas de montagem: era um megafone contendo um dispositivo capaz de gravar uma mensagem. Foram gravadas tantas mensagens quanto pessoas presentes na sala. Se tocarem todas juntas ao mesmo tempo, o resultado é um som comum.