Trans-formar: ideias para fazer crescer as plantas de um jardim

Por Luciana Leiderfarb

 

O V Encontro Internacional de Arte para a Infância e Desenvolvimento Social e Humano, que teve lugar a 14 de novembro na Fundação Gulbenkian, convidou a pensar a formação para a primeira infância e o modo como as artes podem estar presentes no trabalho dos educadores

1 – Caminhos para um começo

Era de manhã quando as palavras se fizeram ouvir. Lá estavam elas: infância, artes, relação, jogo, liberdade, trabalho, inquietude. Surgiam uma atrás da outra, profícuas, fluídas como um rio. Eram pronunciadas por quem fora chamado a pensar e a discutir a formação de educadores para a primeira infância, a idade em que tudo começa, a idade do barro moldável onde o mundo imprime as primeiras pegadas. À volta da mesa estavam pessoas como Maria Lúcia Santos e Maria Manuela Rosa, Ana Teresa Brito e Aida Figueiredo, Maria Cristina Parente e Liliana Marques, Elisabete Heleno, Inês Furtado e Madalena Wallenstein, moderados por Paulo Ferreira Rodrigues. Helena Rodrigues e Paulo Maria Rodrigues escutavam, servindo de elo invisível ao grupo e juntando ocasionalmente a sua voz.

Os caminhos conduziam invariavelmente para o modo como os educadores são formados neste campo de apreensão tão precoce, para as lacunas que existem quando a formação inicial não reconhece a sua especificidade, e para a necessidade de que as artes perpassem o processo de educar, como gestos indissociáveis deste, justamente porque vão ao encontro da própria natureza expressiva das crianças.

As experiências individuais de cada um dos presentes teceram uma rede que resultou na formulação de uma vontade: a de contribuir para que a oferta educativa dos 0 aos 3 anos seja mais rica e mais equilibrada. Falou-se do exigente papel do educador, das incoerências da formação, da compartimentação das artes no contexto do jardim de infância, da tendência para se pensar que a criança tem de saber antes de ser, da democratização do ato de criar, da importância do jogo livre como espaço onde a criatividade pode acontecer. Do conceito de bom encontro como início e finalidade da própria educação.

Que conceção de criança temos? Como é que ela vê e apreende o mundo? Qual a sua linguagem? Artes são disciplinas ou, antes, a forma natural de a criança se exprimir? E o que queremos dela? Que fique quieta? Fechada? Calada? Que saiba ler e fazer contas antes do tempo? Que comunique eficazmente? Que se emocione?

O que é uma criança?

Como sempre, no fim de tudo, há uma pergunta. A mais simples de todas. A mais complexa. É o momento de começar.

 

2 – Sobre música, árvores e florestas. Ou de como o educador/professor pode mediar a descoberta do mundo

Estamos no V Encontro Internacional de Arte para a Infância e Desenvolvimento Social e Humano, um dos vários momentos que pontua um projeto bem mais vasto, apoiado pela Fundação Gulbenkian e intitulado – com aquela exatidão das palavras inventadas – GermInArte. O termo revela a incontornável condição da arte – a de germinar, a de fazer crescer, a de lançar raízes, a de imprimir movimento. A de transformar. Com este pressuposto implícito no nome, GermInArte é um ciclo de crescimento de quatro anos de duração em que se tenciona pensar a formação para a primeira infância e o tipo de alimento – educativo, afetivo – que recebem aqueles que nela intervêm. Em que se convida a refletir sobre uma formação que transforme, que não deixe ficar tudo na mesma, que não seja um mero repositório de hábitos e rotinas há muito adquiridas e por isso aceites como válidas.

E se a manhã foi tempo de formular perguntas, a tarde trouxe a participação de quem no terreno já obteve algumas respostas.

Ricardo Freire chegou com uma canção e uma dança. E pôs o auditório todo a cantar e a dançar. Assim comprovou que a música estabelece um canal de comunicação antes de se transformar em saber, e que o gosto – a fruição – é anterior à conceptualização e à própria aprendizagem. Doutorado pela Universidade de Michigan, clarinetista e professor, Ricardo Freire é diretor do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. Neste âmbito, dirige cursos de musicalização para crianças, assim como cursos de formação para professores oriundos de várias áreas.

“A música tem de instigar” é o seu mote. A música como experiência de vida, que promove o desenvolvimento social, emocional e cognitivo da criança. Aquelas que acolhe no seu curso são encaradas como seres completos e integrantes de uma família, pelo que até aos quatro anos e meio os pais as acompanham. “Ser professor de crianças”, diz Ricardo Freire, “requer musicalidade, que não é saber mas viver a música no quotidiano. E requer capacidade de se relacionar.” O motor de tudo está no laço afetivo que venha a ser criado, pois “é a partir daqui que a criança se coloca no mundo”. A formação para professores obedece a iguais premissas, trabalhadas em equipa e valorizando a linguagem não verbal, os gestos, o olhar. Aprende-se refletindo sobre o processo de formação, sobre as dúvidas que levanta, sobre as surpresas que gera. “Tornei-me professor de crianças porque me tornei pai. A música ajudou-me a ser pai, a trabalhar uma relação.”

Ricardo Freire trouxe exemplos do seu trabalho – cuja base teórica assenta em nomes como o de Edwin Gordon, Alda Oliveira e Keith Swanwick. Num deles, um “Curso de Musicalização Inclusiva” para pais e bebés com necessidades especiais dos 9 meses aos 2 anos que teve início este ano, misturou pais e bebés ditos normais. E mostrou como progride uma aula composta por pais que jamais haviam deixado outro adulto pegar no seu bebé ou que jamais tinham estado próximos de uma criança com necessidades especiais. Numa palavra, como a música pode servir de ponte relacional que facilita qualquer abordagem educativa. Alertou para a necessidade de planeamento: a sua equipa de formadores reúne de duas a três horas por semana para planear o que depois, no contexto da aula, vai aparentemente ser esquecido. “A aula é a antítese do planeamento, mas este é necessário. Assim como a síntese e a reflexão sobre o que se passou”, termina Ricardo Freire.

No lado oposto do mundo, Britta Madsen trabalha com crianças na natureza, num jardim de infância localizado em Herning, “no meio do nada”, na Dinamarca. Todos os dias, independentemente das condições meteorológicas, leva as crianças à floresta e passa aí com elas longas horas. “A natureza é diferente para cada um de nós. Porém, partilhamos a capacidade de perceber que ela proporciona instalações únicas, e que podemos usá-las para transmitir coisas de grande valor às crianças”, diz Britta. Para ela, e ao contrário do que tendemos a pensar, tudo o que se faz nos espaços fechados é passível de ser feito no exterior.

A palavra “kindergarten”, estreada por um alemão de nome Fröbel em finais do século XIX, não passa de uma metáfora que realça a conexão indissolúvel entre infância, natureza e crianças. Sugere que o crescimento destas é (ou deve ser) harmónico e natural como o das plantas que povoam um jardim. A Dinamarca seguiu esta indicação à letra e, hoje, 10% dos jardins de infância do país são como aquele onde Britta trabalha, chamado “nature kindergarten”, e a tendência é para que a oferta se multiplique em função de uma procura cada vez maior. “Existe na Dinamarca muita investigação sobre a forma como as crianças de hoje vivem e sobre o modo como estão conectadas à natureza”, explica Britta.

Em Portugal ficaríamos apreensivos com a descrição do que considera a sua “previsão meteorológica favorita”: temperaturas entre os 15 e os 18 graus, algum sol, alguma chuva e vento vindo de todas as direções. Mas Britta acredita no que faz, acredita nos benefícios de uma exposição que desperta todo um novo sentido do espaço e da luz, que proporciona ar limpo e fresco, que reduz os conflitos e promove a tranquilidade, que diminui as doenças, que estimula o desenvolvimento motor, a concentração e a fantasia, e que torna as crianças mais sensíveis e atenciosas.

No seu dia-a-dia, a criança é pensada tendo em conta seis aspetos: o desenvolvimento pessoal, as competências sociais, a linguagem, o corpo e as funções motoras, a natureza e os fenómenos naturais, e as formas e valores culturais. Estes fazem parte do currículo de todo e qualquer educador. Porém, um educador ligado a um “nature kindergarten” irá ter sempre a natureza como pano de fundo e como lugar onde tanto as grandes questões como as pequenas são colocadas. Britta dá o exemplo de Agnes, que tinha medo das aranhas. Para a ajudar a ultrapassar o seu receio, instou-a a procurar uma. Falaram sobre o que é sentir medo, sobre a confiança no outro, sobre a possibilidade de fazer coisas que pensara não ser capaz de fazer. Ao procurar a aranha, a menina teve de pôr o seu corpo ao serviço da tarefa e controlar os seus impulsos. Outros meninos vieram juntar-se-lhe, empurrando-a a continuar, observando com ela a teia da aranha encontrada…

Para Britta Madsen, só um adulto que se divirta com as crianças – que faça o que os outros já se esqueceram – poderá ser um educador bem sucedido neste contexto. “O melhor que temos de fazer é nunca esquecer o que é ser uma criança, o que é descobrir as coisas pela primeira vez”, adverte. Por isso, entre as atividades pode estar o ato de seguir uma minhoca a entrar e sair da terra, fazer uma fogueira e manter o fogo (“e ninguém morre!”, ri-se Britta), atirar pedras ao lago, procurar folhas comestíveis e imaginar uma refeição… “As crianças por vezes passam duas e três horas a fazerem atividades em que só param para comer, tal a concentração que adquirem. E dizem gostar de estar na floresta porque aí podem fazer coisas por elas próprias.”

Quem não gosta?

Paulo Maria Rodrigues apresentou uma ação de formação concebida no âmbito do projeto GermInArte em que esta mesma descoberta era crucial: a de que o processo de aquisição de competências artísticas pode fazer-se através da experiência. Para tal, foram desafiados 25 profissionais – de professores e educadores a músicos e artistas, na condição de que trabalhassem com bebés – a entrar no seu próprio “Jardim Interior”, o título de uma viagem por dentro da prática artística que duraria uma semana e terminaria numa performance para Pais e bebés. Guiava-os a noção de uma “formação imersiva”, que transformasse em vez de formar.

“Formação é uma palavra próxima de formatar, de fazer e avaliar todos por igual. E transformar dá a ideia de um processo, pondo o foco no que acontece e não onde vamos chegar”, diz. ‘Trans’ é a partícula que interessa num caminho transversal, transdisciplinar e transitório.

Não perene – crescer não o é. Nós não o somos.

É tempo de pensar que tipo de florestas damos às nossas crianças.