No tempo das palavras novas

Por Luciana Leiderfarb

Sobre o XI Encontro Internacional de Arte para a Infância e Desenvolvimento Social e Humano que teve lugar a 13 de novembro de 2021 na Fundação Calouste Gulbenkian.

O XI Encontro Internacional de Arte para a Infância e Desenvolvimento Humano teve lugar a 13 de novembro de 2021, com dois auditórios a comunicar-se via Zoom, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, e no do Convento do Espírito Santo, em Loulé. E houve quem participasse a partir do Brasil e do Canadá.

Se uma coisa aprendemos com esta pandemia que assolou o mundo, é que a anulação da distância está ao alcance de um clique. E que a presencialidade pode adaptar-se a novos moldes. O XI Encontro Internacional de Arte para a Infância e Desenvolvimento Humano decorreu, como sempre, na Fundação Gulbenkian. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu estar no Auditório do Convento do Espírito Santo, em Loulé. E o que separava ambas as audiências era exatamente aquilo que as unia: compreender de onde se partiu e onde se chegou, como é que as vozes do Grupo de Educação e Desenvolvimento Humano – CESEM e da Companhia de Música Teatral (CMT) colaboram para uma visão inclusiva, inovadora e criativa sobre o papel da música na infância. Os itinerários formativos desenham o país de norte a sul, já não há recanto onde não se chegue, porque em toda a parte há crianças e adultos a precisarem da linguagem sonora para comunicar e para respirar.

 

Resiliência, palavra-chave

O Encontro teve início pela mão de Ana Isabel Pereira, que falou da formação no âmbito da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade NOVA de Lisboa, na qual a professora Helena Rodrigues teve um papel essencial ao introduzir, em 1990, há já 22 anos, a Teoria de Aprendizagem Musical de Edwin Gordon. No fundo, trata-se de compreender “como se faz a aquisição do vocabulário musical a partir do nascimento”. Com o tempo, surgiu a necessidade de sistematizar estes conhecimentos e perceber de que modo podiam ser trabalhados no contexto de uma sala de aula — levá-los para onde seriam mais úteis.

Nos últimos anos, ao curso de 2019 dedicado à música no 1.º Ciclo do Ensino Básico seguiu-se um outro, em 2020, destinado à primeira infância, até aos 5 anos de idade. O último curso decorreu em 2021 e, sob a orientação de Rita Roberto, aprofundou-se o conjunto de técnicas, ferramentas e propostas na escuta musical dos 0 aos 5 anos. No âmbito da pós-graduação em Música na Infância, outro dos pontos cardeais formativos existentes, procurou-se unir a intervenção e a investigação, uma vez que “não existe, a nível universitário, oferta deste género”. “Não há uma formação específica para trabalhar em contextos educativos ou artísticos para crianças dos 0 aos 5 anos”, comentou Ana Isabel Pereira. Por este motivo, torna-se urgente “utilizar recursos de natureza musical para pessoas de formações muito diversas”. Os eixos são quatro: formar, criar, investigar e intervir.

Em jeito de exemplo, apresentou-se o trabalho de pós-graduação de Inês Lemos, Íris Godinho, Patrícia Paiva e Raquel Oliveira, intitulado “Perspetivas em Psicologia da Música e Educação Musical”. Desde Loulé, ouvimo-las discorrer sobre o “comportamento rítmico-motor de crianças de 5 anos com música gravada”, que replica um outro trabalho realizado em 2012 por Paulo Ferreira Rodrigues. Por meio de vídeos, as conclusões levaram a uma comparação minuciosa entre o estudo original e o replicado.

Também a intervenção de Rita Roberto trouxe contributos. “Trabalhar com o crescimento da infância é, também, vivê-lo”, disse ela com o seu bebé ao colo. Como expandir o impulso da criação que está latente em cada pessoa? Como abrir o espaço para que ele se manifeste e floresça e frutifique? É para responder a estas perguntas que Rita exerce a sua atividade. As próprias memórias ajudam a compreender o que está no fundo destes processos em que ver crescer é igualmente crescer: “Lembrei-me do caminho que fazia para a escola com o meu pai. Ele, sem o saber, acompanhava-me numa investigação sobre padrões rítmicos. O meu passo tinha de acompanhar o dele — o que era interessantíssimo. Como encaixar os meus passos nos dele? Mesmo que não queira, o adulto está a participar nas pesquisas que as crianças empreendem.”

Quem trabalhar com elas, tem de estar na disposição de o fazer com o corpo. E elas precisam de nós enquanto testemunhas das suas descobertas. “A observação não é passiva, na medida em que é transformadora. O olhar é transformador e mesmo construtor”, diz Rita Roberto. No fim, o que é preciso compreender é que a infância, sendo um lugar privilegiado para criar mundos, não abandona os adultos. Estes continuam a crescer.

 

Resistência, palavra sábia

Em Lisboa, na Gulbenkian, e em direto para Loulé, chega a vez de Helena Rodrigues, Paulo Maria Rodrigues e Jorge Graça oferecerem a sua experiência. Paulo será o primeiro, e ocupa-se de resumir os acontecimentos de 2021. “Em cada projeto que fazemos, procuramos através da arte criar empatia e sintonia com as pessoas e com o ambiente”, começou, para de seguida falar do projeto “Mil Pássaros”, uma instalação no âmbito de Lisboa Capital Verde que nasceu em 2019 nas escolas com a construção de ‘orizuros’, pássaros produzidos segundo a arte do origami.

Outro projeto da CMT, “O Céu por Cima de Cá”, que se “adapta aos lugares onde é feita”, teve que sofrer adaptações neste contexto de pandemia. A peça “prevê um protocolo de escuta e composição” — no caso, tratava-se de “escutar Loulé”, recorrendo aos arquivos sonoros e fílmicos da vila, interagindo performativamente com a mesma. Este espetáculo, idealizado para ser presencial, acabou por ser realizado na totalidade via Zoom, o que “exigiu uma forma de pensar completamente diferente”. Ao longo de 2021, houve tempo ainda para “criar constelações (artístico-educativas) novas”.

Jorge Graça referiu-se a uma delas, “Deep Listening, Deep Sea”, cujo objetivo era “consciencializar sobre o mar profundo”, bem comum da humanidade, que não pertence a país nenhum. Dividida em duas fases, a iniciativa ditou que, primeiro, as paisagens sonoras fossem geradas no pianoscópio — que são pianos desconstruídos. Após a recolha, num workshop ocorrido no Ciência Viva, em Aveiro, seguiu-se a criação do ‘Polisphone’, isto é, um “postal que é um conjunto de sons”.

“Aguário”, que teve início em Famalicão, em setembro de 2021, é um projeto “ainda a constelar”, como continua Paulo Maria Rodrigues. “Á água é o elemento do qual dependemos, mas também possui imensas possibilidades criativas”, explica, referindo-se a uma instalação em que as diferentes sonoridades do meio líquido surgem como centrais. Não é por acaso que esta instalação culmine com uma canção tradicional tocada com o instrumento água — como se faz numa ilha do Pacífico, em que as mulheres vão para o mar e fazem música utilizando a água sonoramente.

Também o “Poemário” viveu o seu primeiro espetáculo via Zoom — o chamado “Poemário Vivo”, uma performance músico-teatral que se serve do Zoom para juntar dois artistas a tocarem em cidades diferentes — e viajou virtualmente até a Tailândia, onde participou do Bangkok International Children Festival. “A pandemia mostrou-nos outras formas de fazer as coisas. E no meio disso, a performance surgiu como entendimento de que estamos juntos, estamos em conexão”, disse Paulo.

De laboratório em laboratório, o Zoom Lab Mil Pássaros, no Brasil, enfatizou “carácter vivencial da formação”, como disse Helena Rodrigues. Veio depois o I Lab Mil Pássaros, em julho de 2021, e por fim o T Lab Mil Pássaros, em Loulé, em novembro. A consigna é sempre “sensibilizarmos para escutar melhor”. “Enquanto houver pássaros, estamos atentos ao ambiente e à emergência climática. Falar de pássaros é falar sobre a nossa sobrevivência. Cuidar de nós próprios é a mensagem. Como é que vão ser as crianças sete gerações depois, que herança lhes vamos deixar?”, questionou Helena.

A tudo isto acrescente-se a instalação “Mil Pássaros” na Estufa Fria, em Lisboa, onde as aves — os orizuros criados por crianças da cidade — puderam habitar o seu espaço natural. Por fim, nesta fase, o Encontro ganhou asas, e os presentes em ambos os auditórios puderam instalar o Ciberbird 3.0 nos telemóveis e pô-los a cantar.

 

Insistência, palavra vendaval

Se existe uma história capaz de mostrar a força de uma ideia, essa é a de Marisa Fonterrada, professora no Instituto de Artes da Universidade de São Paulo, especializada em Educação Musical e Psicologia da Música, e doutorada em Antropologia. A participar do XI Encontro via Zoom, desde o Brasil, onde reside, esboça desde logo o propósito de falar sobre um dos “grandes presentes” que a vida lhe deu: a oportunidade de se cruzar com Murray Schaefer, na década de 1970. Foi através de uma amiga que ficou a conhecer alguns dos seus livros, trazidos da Argentina para solo brasileiro. “Fiquei entusiasmada e comecei a aplicar essas ideias nos meus alunos adolescentes”, relata.

Tratava-se apenas do início de uma relação duradoura, que se desenvolveu na década seguinte, quando começou a lecionar no Instituto das Artes. Nessa “nova vida”, impunha-se realizar um projeto de investigação. Optou pelo tema “Educação musical pela voz”, não só pelo fascínio que a voz humana lhe despertava, mas porque, no Brasil, a dificuldade em estudar música se prendia com a compra de instrumentos. Até que surge a possibilidade de passar cinco semanas no Canadá, integrada num intercâmbio cultural para recolher novos conhecimentos, que Marisa assume como um desafio para visitar os coros daquele país. Não tendo qualquer referência, lembrou-se do nome de Schaefer e foi à procura dele “num tempo em que não havia Google”. Murray ajudou-a, ela fez a pesquisa e conseguiu uma bolsa que lhe permitiu aprofundar a temática. Porém, o contacto com este compositor trocou-lhe as voltas, pois “valia a pena concentrar-se nele”, ler os seus livros. Sentiu que tinha de levar esse corpo de ideias para o Brasil e, nos anos 90, foi ela mesma que o traduziu.

Por sua vez, Schaefer viajou para São Paulo e para o Rio de Janeiro. E ela conseguiu outra bolsa para fazer o doutoramento em Montreal e em Otawa. Não sobre coros, mas exclusivamente sobre a obra dele, em especial “Pátria”, uma série de 12 peças cuja criação demorou 40 anos. “A arte de Schaefer mescla-se com o sagrado. E uma crítica à sociedade que se esqueceu do transcendental e enveredou pela materialidade. O transcendente consegue-se pela arte”, explica Marisa Fonterrada, que participou nas experiências que Schaefer proporcionava na floresta — o viver numa comunidade igualitária “enquanto se faz arte num contexto de interdisciplinaridade”. Quando o compositor faleceu, ela escreveu-lhe uma longa carta que foi lida neste Encontro, da qual sobressaem estas frases de Murray Schafer: “A arte deve ser perigosa. Sejamos uma comunidade de aprendizes.”

 

Criatividade, palavra de futuro

Da parte da tarde, o Encontro começou com uma conversa entre Paulo Pires e o coreógrafo Rui Horta. E o poeta Herberto Helder como mote: “É preciso cantar como se alguém soubesse como cantar.” A criatividade depende do tempo e do espaço para o erro e a pesquisa. De cantar sem saber bem como cantar.

Rui Horta deu o exemplo com o projeto O Espaço do Tempo, que fundou em Montemor-o-Novo. “O ambiente do Espaço do Tempo é o ambiente de processo. O processo, em arte, é falarmos para alguém que pensamos que nos entende. A música e o corpo são formas precognitivas. A música liga totalmente com o corpo, e são formas que não passam pela palavra”, disse ele, reforçando que a “criatividade é ter confiança e viver na plenitude”. “É ter podido errar, cair, falhar. E para nos desenvolvermos enquanto país temos de ser criativos — o conhecimento não chega.”

A criatividade permite descodificar sistemas complexos, “por isso a exposição ao objeto artístico é tão importante”, nota o coreógrafo, sendo que a resiliência, o rigor e a coragem são valores que lhe estão intrinsecamente associados. Lamentavelmente, “a criatividade não está no discurso político dos governantes”, ainda que para muitos, tal como para Rui Horta, tenha sido uma opção de vida desde o início. E prende-se, acima de tudo, com não permitir que os medos a abafem e com a “capacidade de aceitarmos a liberdade numa sociedade onde os pais são máquinas de dizes que não”.

Paulo Pires observou que “hoje em dia, os privilégios são o risco e o tempo lento”, o que se aplica ao projeto criado por Rui Horta em Montemor. O artista assumiu que numa cidade de província, um projeto artístico tinha necessariamente de ter subjacente uma proposta sociocultural, “não podem estar desligados”. A arte é “uma porta de entrada para focar os miúdos” e “a atenção à criatividade gera muitos círculos concêntricos de competências sociais”. Para Rui Horta, a grande pergunta é se estamos hoje a caminho da utopia ou da distopia. Ao que ele próprio replica: “O futuro só pode ser coletivo. Sair de um sistema competitivo para um sistema colaborativo. Não há meios termos.”

E o que dizer sobre a questão ambiental, que os artistas — e a CMT — não se têm isentado de abordar?, perguntou Paulo Pires. “As artes lideram esta mudança para um mundo mais sustentável. Os teatros são as grandes catedrais do nosso tempo, são os espaços rituais, coletivos, de reflexão. Se temos plateias, temos de ter algum tipo de manifesto em relação ao mundo. Se cada organização fizer o seu trabalho de casa, a sociedade será mais sustentável”, respondeu Rui Horta.

 

Musicalidade, palavra de ventre e de berço

Desde Toronto, Canadá, Sandra Trehub — que foi professora de psicologia na Universidade de Toronto e investigou profundamente o impacto da música nos mais novos — participou do Encontro via Zoom com uma intervenção intitulada “Musical Begginings”. E deu achegas fundamentais quanto ao modo como as crianças percebem e vivenciam o universo sonoro. “As crianças pequenas percebem música de qualquer cultura e para elas os padrões parecem ter grande importância. Ao lidar com seres não verbais, não há instruções possíveis. Elas reconhecem melodias em diferentes tons e tempos, tal como os adultos. Têm memória de longo prazo para melodias, ainda que se lembrem melhor de pormenores verbais do que instrumentais”, partilha.

Um bebé de seis meses deteta ritmos e sons até melhor do que um adulto. E a sua flexibilidade decorre justamente de desconhecer as convenções musicais ocidentais — essa aculturação só ocorre ao ano de idade. A fala da mãe, não sendo musical, “tem elementos musicais”, é música aos ouvidos do filho. E se a interação física depende da cultura a que se pertence, as canções maternas são sempre rituais. “São canções cantadas repetidamente, no mesmo tom e ritmo, e a criança não se cansa delas. Por outro lado, as mães precisam do feedback da criança para produzirem uma performance significativa”, explica Sandra Trehub. Neste sentido, as canções de embalar possuem características semelhantes à volta do mundo.

“Quando pensamos em música para crianças, é um erro pensar que se trata de algo apenas para se ouvir. É para se ver, para sentir com o corpo. E as canções dirigidas às crianças captam mais a sua atenção do que aquelas que o não são. Estas são fontes de prazer, de conforto e de pertença. E têm consequências sociais, ao ponto de as crianças preferirem adultos que cantem o repertório da mãe”, continua. O seu relato é uma viagem pelas reações infantis perante a música, apoiada por vídeos que fornecem uma grande riqueza de pormenores. Por exemplo, uma criança colabora mais se a mãe cantar uma canção familiar, ao mesmo tempo que a própria mãe consegue acalmar-se. A mesma canção ouvida aos nove meses provocará diferentes reações: primeiro o sorriso, o ‘cantar em duo’ entre mãe e filho, depois a dança, por fim a palavra. “Parece não haver paralelo entre o desenvolvimento da linguagem e a capacidade de cantar. Não se desenvolvem ao mesmo tempo. Em geral, o cantar apresenta mais fluência”, diz a psicóloga. Quando uma criança se torna autónoma no ato de cantar, isso é um elemento de autorregulação, que facilita as separações e enriquece as brincadeiras. Cantar é o resultado incidental e espontâneo da exposição à música.

Assim chega ao fim o XI Encontro. Só falta o filme produzido a partir do espetáculo “O Céu por Cima de Cá” em Loulé, de 2020. Inteiramente virtual, feito com a presença que os tempos impuseram. Uma presencialidade nova que trouxe novas abordagens e novas sonoridades. Cá e lá. Distantes sem distância.